Através da gastronomia junina é possível ler um pouco da história e da formação socioeconômica do Estado
“Bolo de milho, broa e cocada/ Eu tenho pra vender, quem quer comprar?/ Pé de moleque, alecrim, canela…” Os versos de Feira de Mangaio, clássico de Sivuca eternizado na voz de Clara Nunes, parece ecoar mais alto todo São João. É que a música, além de embalar os festejos por ser um forró, também faz alusão direta a uma das maiores tradições juninas: a gastronomia.
Além dos pratos já citados, é inimaginável um São João no Nordeste sem pamonha, mungunzá, canjica, milho cozido e assado e bolo de macaxeira. A comida, desde o plantio, passando pela colheita, preparo e por fim o tão aguardado consumo, ocupa um lugar central nas festas juninas da Região e é fruída sempre de forma coletiva. Em Pernambuco, terra de tantas tradições gastronômicas, não seria diferente.
Através da gastronomia junina é possível ler um pouco da história e da formação socioeconômica do Estado. O milho, o coco e o açúcar – três pilares da alimentação deste período – simbolizam as heranças indígenas, africana e portuguesa. A origem da festa está nas celebrações pagãs europeias, que marcavam as colheitas no solstício de verão. Aqui no Brasil as comemorações se adaptaram ao ciclo do milho. “O costume é iniciar a plantação de milho no dia de São José, 19 de março. Se estiver chovendo, é sinal que a colheita três meses depois, em junho, vai ser boa. O cume da festa acontece no São João, mas existem muitas questões sociais e econômicas que perpassam outros períodos do ano, que se iniciam antes”, explica o historiador e professor Daciel Santos, pesquisador de cultura popular.
Após colher, é hora de celebrar. Com muita música, quadrilha, rala bucho e fogueira acompanhando os deliciosos quitutes tradicionais. Se originalmente os elementos juninos que hoje temos como típicos têm forte influência europeia, todos foram reinventados e adaptados aos hábitos locais ao chegarem ao Nordeste. O “en arrière” da dança francesa se transformou em “anarriê” na quadrilha brasileira, por exemplo. E o açúcar, cuja cultura chega com os portugueses em Pernambuco, acaba incorporado no preparo das comidas.
“Os povos originários da América Central tinham um uso muito largo do milho, eram civilizações profundamente ligadas a esse insumo. No Brasil, as populações tinham o uso maior, mais frequente da mandioca, mas o milho estava ali também. E aí temos o leite de coco, um ingrediente que vem do Norte da África que foi se incorporando nessa dietética brasileira. No final das contas, depois foi essa mão africana quem acabou mesmo por temperar nossa gastronomia”, ressalta o jornalista e antropólogo Bruno Albertim.
Autor dos livros Pernambuco – Livro dos chefs, Nordeste, uma paisagem comestível e Recife – Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cozinha de Tradição, Bruno aponta para a centralidade da mesa nos festejos de São João. “As festas coincidem com o auge da colheita de milho, esse cereal da terra, cereal originário, que foi reconfigurado por essa mão portuguesa, ao assimilar saberes culinários de várias origens, principalmente essa origem moura africana, que usava o leite de coco, a canela também que veio da Índia como tempero, o açúcar de origem árabe, que foi o motor desse processo colonizador”.
A cozinheira e chef do Dùn Ajeun Culinária Afrodiaspórica, restaurante localizado no Centro do Recife, Tayná Passos carrega em seu fazer gastronômico essa herança africana e indígena. Para ela, celebrar a festa junina é trazer consigo “diversas referências da cultura nativa, história, tradição, ancestralidade, consciência e muito sabor.” Ela prepara há anos um bolo de milho especial, que além de levar milho ralado e leite de coco, tem queijo ralado como diferencial. “O bolo de milho está ligado à origem e costumes de soberania alimentar indígena. O quitute faz parte da cultura dos indígenas tupi-guaranis e muito presente na culinária nordestina, especialmente nos festejos juninos”, complementa.
Especialmente para o Cultura PE, Tayná mostrou o passo a passo de sua receita. O vídeo completo está disponível no Instagram @culturape. Leia aqui também o artigo “A importância da gastronomia e economia no ciclo junino”, escrito pela Dianne Sousa e Manoelly Vera Cruz, da Assessoria de Gastronomia da Secult/PE.